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Arte & Estética

Sestros e cicatrizes: “Capitão Phillips” e o cinema culpado

O cinema contemporâneo lida com seu passado como quem carrega um fardo. Em resposta às críticas de alienação e massificação, parece coagido a afirmar, de novo e de novo, a sua reflexividade.

Seus gêneros fundamentais não podem escapar da revisão. Os filmes acertam contas com seu legado, mas sem grande convicção. O resultado? Cacoetes confusos, mas interessantes de observar.

Nisso, “Capitão Phillips” consiste em excelente exemplo. Na costa da África, piratas somalis sequestram um navio de carga. Richard Phillips, o sagaz capitão do Maersk Alabama, busca enganar os criminosos e fazê-los abandonar o barco.

Com um punhado de imediatos, guarda a ponte de comando enquanto sua astúcia permite. Quando os somalis tomam o navio, fica claro que a oposição central do filme será entre Phillips e o corajoso, engenhoso e inocentemente corrupto Muse, chefe do bando.

As inteligências de Phillips e Muse não cansarão de se enfrentar. “Olhe para mim”, diz o pirata. “Com certeza”, replica Phillips. “Olhe para mim”, repete. “Com certeza”, retoma. “Agora eu sou o capitão”, afirma Muse.

Phillips luta como pode. Após tergiversar com seu oponente até cansá-lo, garante a chance de seus homens sequestrarem o sequestrador. O jogo se inverte e os somalis são convencidos a abandonar o Maersk Alabama com 30 mil dólares.

Na baleeira do navio, os piratas veem a chance de retornar para casa. Todavia, os dólares não são o suficiente. Os somalis sequestram Phillips, na expectativa de trocá-lo por mais dinheiro. Os homens de Phillips chamam a Marinha; a Marinha, a Casa Branca; a Casa Branca, os Seals.

O roteiro termina com a chegada da cavalaria e um final feliz. E o filme se transforma em uma estranha reescritura de “No Tempo das Diligências”, com criminosos, heróis acidentais, resgates.

Contudo, em 2013 os bandidos têm rosto e razões. Obrigados a trabalhar como piratas para o chefe de uma milícia, agem, mas não por prazer. Metamorfoseados de pescadores em criminosos por um chefão, transformam-se, eles próprios, em vítimas.

Não é casual que aquela luta verbal entre Muse e Phillips se concentre em analisar a condição de ambos. “Ano passado, peguei um navio grego. Seis milhões de dólares”, diz Muse. “Seis milhões de dólares?”, responde Phillips. “E o que você está fazendo aqui?”.

Talvez preferisse estar em outro lugar. Phillips, também. O trabalho de um é o cárcere do outro. Mas, nessa dinâmica, a vontade do somali pouco importa. “Tem de haver algo além de ser pescador ou sequestrador”, diz o capitão. “Talvez na América”, responde o pirata.

Neste ponto, tenta-se introduzir um grão de contradição em “Capitão Phillips”. Duas narrativas querem montar um contraponto. A primeira se refere ao embate entre mocinho e bandido. Indiscutivelmente óbvio, decerto.

Contudo, ao ultrapassar esta leitura, o filme pretende guardar uma surpresa. E ela reside em não ignorar a exploração do próprio explorador. De súbito, todos os envolvidos possuem aquela humanidade que o cinema havia reservado apenas para seus heróis.

Mas não apenas isso. A segunda, mais interessante, tenta pôr à luz uma incoerência interna à relação do próprio Phillips com sua tripulação. O pirata se vê lançado ao crime por força maior. Mas, também Phillips não se guia por energias que lhe são invisíveis?

O melhor exemplo ocorre próximo ao final da narrativa. Ambos os capitães travam um estranho diálogo. A perseguição está perto do fim. Os Seals se aproximam. Phillips, então, tenta mostrar a Muse o quão cego está aos riscos que corre.

Não aceitar 30 mil dólares e a viagem a salvo de volta para a Somália pode custar a vida. Muse, então, nos diz que não pode voltar com tão pouco nas mãos. Seus chefes querem mais. “Todos temos chefes”, responde Phillips.

No fim, os dois não parecem tão distantes. Os capitães são parte de um negócio. Em suas viagens, cada um vai ter de prestar contas a algum patrão pelas perdas e danos que não conseguiu evitar.

Olhar com mais atenção permite perceber que Phillips também havia colocado a vida de seus homens em risco. Ao primeiro sinal dos piratas, sua tripulação cogita a possibilidade de retornar para um lugar seguro.

Os marinheiros, obviamente, importam-se menos com o trabalho e mais com suas vidas. É Phillips quem os impede. Ele está compelido a levar até o fim a obrigação imposta em seu contrato de trabalho.

Se Phillips e Muse dessem um passo atrás em seus deveres com os capitalistas que lhes colocaram naquela posição… Porém, decidem se transformar em portadores de forças produtivas possíveis de destruir a eles próprios, num exemplo do poder da alienação e da…

Não é necessário seguir adiante para saber onde este argumento pode levar. “Capitão Phillips”, cansado de “No Tempo das Diligências”, quer, na verdade, ser “A Batalha de Argel” ou quem sabe, “O Conformista”.

Descrever, escrutinar, compreender e criticar as relações de opressão das mais variadas surge como sua tarefa. Nada contra. Contudo, não será esta tentativa mais um ato falho do que propriamente uma motivação sincera?

O impulso que parece obrigar um filme convencional a significar mais do que quer – e pode –torna-se um tema importante de perceber. Compreendê-lo permite enxergar em que momento críticas aparentemente tão radicais, outrora, parecem ter se exaurido.

O que ficou pelo caminho e o que se colocou em seu lugar consiste no cinema de hoje. Sua obrigação contratual se tona negar a si mesmo. Tal herança, no fim, parece uma cicatriz que se quer esquecer. Para isso, adota manias duras de disfarçar. E, o que dirá, de convencer.

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