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Moonlight: ansiedade e espera – o ofício e o afeto sob a luz do luar

João Martins Ladeira

Há um ar de tensão em “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, um vestígio que se anuncia logo na primeira cena e que persiste até o final. Pressente-se este algo já nos primeiros gestos de Juan, nos olhos atentos que se movem de um ponto a outro do quadro, perscrutando o risco de alguém ou de algo. Está em seu porte, na figura daquele que não se permite relaxar, conduzindo-se de seu Chevrolet Impala – uma fortaleza em movimento na qual é rei – em direção aos negócios que toca na sua boca de fumo. Afirma-se nos encontros sempre tristes mantidos por Paula tanto com Chiron quanto com Black – nas chantagens por dinheiro ou nas exigências por carinho. Mostra-se às claras na constante intimidação por Terrel, nas cenas de rua em que a gangue achaca o rapaz franzino com a ameaça do punho cerrado.

Este anúncio da violência instaura a ansiedade que perpassa a obra, prolongando-se de forma marcante. Por definir o ritmo do filme como um todo, não nos permite nunca relaxar. Como o protagonista, em sua jornada de formação em direção à força bruta – que nunca exerce –, nos sentimos compelidos a não baixar a guarda. Moonlight nos instiga à certeza de que a vinda do pior depende apenas de uma questão de tempo. E, no entanto, à medida que este tempo passa, descobre-se no filme outra sensação – o seu oposto. Notável exemplo do discurso do amor, o filme de Barry Jenkins nos emociona graças a estas duas qualidades, na forma como trafegam no interior de suas imagens. Seu mérito consiste na persistência, lado a lado, de ambas as sensações. Apreensão e felicidade se descobrem juntas, em improvável continuidade.

Nesta convivência que outorga riqueza à obra, assistimos à sobreposição de dois momentos distintos. Ambos se aproximam, sem nunca se tocar – quase que se enxotam. No domínio do trabalho é que o risco se anuncia. O quinhão da violência se refere ao ofício, conduzindo à metamorfose de Little em Black. Poderia a pobreza permitir que fosse diferente neste mundo cercado pelo crime e pelas armas? Afinal, a luz do luar paira sobre Liberty City – fato que passa longe da menção explícita, construindo a cumplicidade com quem enxerga aquilo que há para ver. Se poderia aliviar o peso de uma vigília tão tensa quanto contínua somente num outro instante, o do encontro, este cuja chegada se aguarda sempre tão ansiosamente. O contraponto ao embate reside na ternura, que o elimina conforme abre espaço para o amor.

O convívio destes dois tempos explica a ansiedade excepcional criada pelo filme. Frente ao peso do ofício, sente-se que cedo ou tarde o confronto possa afinal explodir. Por sobre a película de amor que indiscutivelmente se assiste, espera-se sempre por outra, pela narrativa de crime que bem poderia dar a largada a qualquer instante. O tempo da labuta implica o constante perigo, a obrigatória atenção, num ofício cujo destino parece ser sempre o campo de batalha, este em que não cabem aposentadorias. Curioso, porém: conforme alimenta aquele tom grave que produz a angústia tensa da vigilância, o filme quase que se nega a mostrar este momento da violência, num adiamento interminável, a pôr o receio em conserva.

Enfim, o afeto se anuncia – as braçadas de Little guiadas pelo zelo paternal de Juan; a iniciação sexual de Chiron na praia por Kevin. Mas ele é breve. Vem então o instante – um dos dois, porém o mais fatídico – em que o conflito explode. No inverso da reciprocidade que o amor depositado deveria gerar, Kevin espanca Chiron. O evento decorre da corruptela a qual um dos jovens amantes cede, parte de um rito de passagem imposto – e aceito. A delonga passa a ser não mais pelo átimo do carinho, pois esta hora parece já ter vindo – e passado. Ao construir um gigantesco mal-entendido, o imbróglio conduz à separação de ambos.

No segundo episódio de embate explícito, Chiron revida ingenuamente sobre o terceiro implicado – Terrel. A polícia e o reformatório afastam a felicidade, agora, ao que parece, definitivamente negada. No desenvolvimento da narrativa, insinua-se a possível destruição de Chiron, esta que termina substituída pela sua reconstrução como traficante, numa herança tão bem cobrada. Afinal, Juan já se foi, restando apenas uma alternativa terrivelmente arbitrária, distante de qualquer escolha. Teria prevalecido o momento característico ao trabalho. O mundo externo, como tudo indica, sobrepôs-se. A expectativa – devido à dimensão virtual presente como um traço do estilo – remontaria ao filme de gangster, este que Moonlight terminantemente se nega a ser.

Toda esta mescla entre a espera e a vigilância se resolve quando Black e Kevin se põem frente a frente. Quando ambos confluem, mostra-se impossível deixar de compartilhar do júbilo frente à constatação de que não ao embate, mas ao encontro é que todo o filme termina por nos guiar. Todavia, eles se deparam com a dificuldade de encontrar o que dizer um para o outro. A reaproximação ocorre no restaurante barato onde Kevin trabalha como garçom e cozinheiro. No vai e vem de pratos e pedidos, enquanto o primeiro aguarda – talvez a última espera –, um dos amantes prepara uma refeição simples, como uma dádiva capaz de encerrar qualquer cobrança por dívidas passadas. Porém, quanto postos cara a cara, vem a questão sobre como poderão, de fato, se expressar.

Ambos já comeram, beberam e conversaram. Expuseram suas vidas do ponto em que se separaram: para Kevin, um filho, a prisão, a separação; para Black, a sua metamorfose, consequência de uma fidelidade infiel. Em breve, saberemos que, no ato paciente da espera, nunca houve contato físico com mais ninguém. Sedentarismo que ocorre no afeto – este que se esconde –, mas não no ofício. Lá, ao contrário, suas ferramentas se encontram bem à mostra. Estão no corpo que Chiron abandona, em direção à reconstrução pautada por uma notável potência física. O risco obriga que a sobrevivência prevaleça. Mas, o que Black adquire num nível corresponde ao que resguarda no outro. Inscrita nos músculos que vemos está a dissimulação do protagonista, no resguardo de sua interioridade – como quem chora por trás de óculos escuros.

Haveria solução mais atenta à sensibilidade ancestral responsável por definir o amor que esta opção por se trancar em si mesmo? Na dualidade que norteia Moonlight, não se lida com nada além da separação entre a solidão do afeto e a indiferença por parte do mundo em relação a um sofrimento privado. Tal dissociação entre ambos Black resguarda tão zelosamente quanto qualquer outro romântico. Está em seu senso prático, em sua mente, esta que se volta aos demais num ato incapaz de conceder aquilo que apenas o sentimento pode lhe dar; assim como em seu coração, num contato desdenhoso com os outros, trancado como se encontra num prazer pessoal que interessa apenas a ele. Em seus termos, Moonlight se descobre colado a velhas ideias, numa repetição de algo inventado alhures.

Ao final de todas estas voltas, encontra-se o silêncio. Solucioná-lo torna-se o centro de todo o filme. A cena mais importante de Moonlight é aquela em que os personagens trocam olhares ao som de “Hello, Stranger”, canção que participa do passado de ambos; a mesma música que escutavam no carro quando voltavam para casa após a primeira – e única – noite que passaram juntos. Por um lado, sua letra prediz aquilo que ainda estava por acontecer e que já se expressava, produto do mesmo receio sobre o destino que tangencia todo o filme: “If you’re not gonna stay/Please don’t treat me like you did before/Because I still love you so although”. Por outro lado, a canção aponta felizmente para a esperança do futuro que agora se abre.

Devido a tais razões, termina condensando o lirismo que ordena todo o filme, na ironia de achá-lo quando já não se esperava. Mais importante: esta sensação não poderia ocorrer sem um efeito cinematográfico, tornando palpável o afeto – este que se havia retorcido por sobre o risco do embate e que, agora, vislumbra-se através de um interstício introduzido no filme, como uma poderosa imagem de pensamento. A música lida com tudo que, para ambos, parece difícil dizer. Por sobre os rostos mudos dos amantes, ouve-se a voz que sai do jukebox no instante exato em que trocam olhares. “Hello, stranger/It seems so good to see you back again” – escutamos, nós e eles, movidos pelo que vimos antes e ouvimos agora. “You stopped by to say ‘hello’ to me/Remember that’s the way it used to be”.

O efeito se assenta na forma como se lida com a apreensão cinematográfica do real, na repetição que apenas esta arte produz, desenhando-o, construindo-o num plano anexo. Esta cena do jukebox envolve não a reconstrução de qualquer realidade, mas a produção de uma imagem que a ela se sobrepõe. Seu conteúdo se assenta na mais pura sensação de realismo, elaborando um resultado que ultrapassa em muito o próprio real. Tal efeito se deve ao fato de dele não se distanciar. A dificuldade de ambos os personagens em abordar o que os une se soluciona a partir de fatos aparentes: na música que se desdobra em conexão com os olhares que se troca; numa ação coordenada que indica algo invisível, mas agora belamente perceptível.

Obtém-se, então, um efeito impossível de alcançar mediante o mero desenrolar da ação. Esta ansiedade que atravessa o filme, a dualidade entre ofício e amor, condensa-se por um esforço audiovisual. Sua liberação depende da revisão do mundo que a obra elabora de modo tão específico, eliminando-o a fim de remodelá-lo. Surge, assim, um afeto que não se restringe apenas a este filme. Consiste na retomada dos traços centrais ao discurso de amor, velho conhecido, a se expandir para um cenário novo com outros personagens. O elo entre Kevin e Black ocorre na mais perfeita compatibilidade com todos os seus antepassados, numa estrutura que ainda não terminou de se desdobrar. Em Moonlight, seu efeito é o de uma revelação que a mera representação do real jamais proporcionará.

Curiosamente, parte significativa da recepção de Moonlight esteve em questões externas à dinâmica cinematográfica. Saudado como uma bela expressão – o que, de fato, é – sobre a condição do negro, as mazelas da pobreza, a degradação das cidades, a homossexualidade, possui, todavia, um lirismo que ultrapassa em muito o documento de denúncia. Porém, teria a crítica conseguido indicar como esta reação opera? Entre o documento panfletário ou um manifesto engajado e uma obra efetivamente cinematográfica como Moonlight existe um abismo. Suas qualidades residem no interior da imagem, e não em qualquer expectativa de representação. Por esta razão, a qualidade inapreensível através de qualquer proposta militante permite a Moonlight escapar da pretensão de nos ensinar algo, explorando qualidades expressivas que apenas o cinema consegue oferecer.

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Demônios incautos: Trainspotting e seu vínculo tênue com o imperativo do gênero

João Martins Ladeira

Certas películas nos fazem sonhar sobre o que seria de seus personagens 20 ou 30 anos após o instante em que sobem os créditos. Trainspotting – Sem Limites era certamente uma delas. Como não nutrir um interesse licencioso por estes sujeitos que vivem no seu próprio limite? Conjecturas sobre o destino desta quadrilha autodestrutiva de viciados cultivava um desejo por nos reencontramos um dia. Revermo-nos prova como este tempo que passa se revela no cinema, em sua aptidão tão própria em capturá-lo.

As mais belas continuações se alimentam deste “algo”. Tal anseio apareceu em obras diversas, como aqueles filmes – tão diferentes – que versavam sobre Antoine Doinel ou sobre Jesse Wallace e Céline. Ao reter quaisquer corpos, a imagem cinematográfica ajusta esta vontade, num sentimento realizado no filme devido àquilo que apenas ele permite reaver. Este exercício se nutre de uma sensação reconfortante de se estar entre velhos amigos, efeito atrelado à presença dos atores, envelhecidos, diante da câmera.

Mas, em sua especificidade, Trainspotting se alimentava de algo bem distinto da perspicácia dos diálogos de certo casal. Tangenciava o inegável carisma de seus personagens, decerto. Contudo, nos conduzia para além. Em T2 Trainspotting, se esperaria um reencontro com o estilo de toda uma época. Seria o desejo de recapturar a qualidade que, em 1996, fez seu precursor tão conhecido: traços que tantos outros filmes copiaram, alguns com maior ou menor habilidade.

Parte da receptividade de Trainspotting – Sem Limites esteve no elogio à “estética pop”. Codinome curioso, indicava uma suposta apropriação do videoclipe pelo longa metragem. Qualidade eminentemente cinematográfica, disfarçava-se por outro nome. Indicava nada mais que o uso dos efeitos longamente conhecidos da montagem. No absurdo de certas cenas criadas por imagens agregadas em conexões esdrúxulas, produzia-se um resultado irreal, embora perfeitamente compreensível.

Haveria melhor exemplo que a busca por dois supositórios de heroína numa privada de botequim, unindo a exploração do sanitário a um mergulho num mar de detritos? Que os extensos delírios de Renton numa tentativa de largar as drogas, associando, em seu clímax, a visão de um bebê morto com alucinações estreadas por cada um de seus parceiros? Que uma overdose na qual se cria uma cova de um tapete, estirado como se encontra no chão daquele pardieiro no qual, do alto de um muro, se aterrissa num salto?

Não foram poucas as comparações entre a MTV e Eisenstein: por mais pobres que parecessem, tinham lá a sua lógica, ainda que funcionassem apenas para quem desconhecia os alicerces do próprio cinema. Parte deste deslumbramento em relação à montagem se referiu a uma suposta tentativa de emular certo efeito alucinógeno, relativo às drogas que pareciam estar no centro de todo o filme. Era uma conexão razoável. Seguindo o rastro da sensação induzida por estas substâncias, nada mais natural para uma película sobre viciados que o sabor de um realismo opiáceo.

Deste modo, se construiria uma realidade desfocada, real apenas segundo o cotidiano absurdo dos próprios envolvidos. Análogo a certo estilo de vida, este efeito teria algo de mágico. Era uma interpretação contraditória. A obra possuiria qualidades inegáveis, mas como documento e não como filme. Seu caráter distintivo decorreria da ilustração de uma marca inerente àquela realidade que pretendia emular, não servindo a nada além de uma descrição sobre ela.

Se as lembranças despertadas pelo filme residissem na retomada de um traço supostamente intrínseco à década de 1990, veríamos, em nostalgia, o modo de ser de certa época que já passou, e não as qualidades do próprio cinema. Afinal, o real distorcido expressaria não um dado desta arte em si, retratando tão somente um indício indiscutível do passado. Engano: o que se enxerga é algo mais, e se refere a um gênero ao qual Trainspotting, quase despercebido, se filia.

As conexões produzidas se assentam num nível bem mais abstrato. Residem não somente nos planos que se liga e na forma particular como se escolheu associá-los segundo o caráter psicotrópico de um real deformado. Seu ímpeto definitivo não se encontra naquelas três dimensões da imagem, mas numa quarta, cara ao cinema. A partir da pretensão representativa, as abstrações construídas retomam uma brecha a partir da qual se abrem conexões de outra natureza.

Esta dimensão surge como uma marca, pairando sobre o seu motivo dominante – inalcançável ao se ater somente a este realismo opiáceo. Em seu devido lugar, a narrativa adquire a sua efetiva dimensão: uma questão lateral quando em contraste com os interstícios das imagens. Trainspotting versa cinematograficamente sobre a vida de um pequeno grupo de trambiqueiros na especificidade de seu caráter aleatório, e esta sua qualidade enquanto cinema é que se torna importante em qualquer análise.

Sua essência se deve mais à coordenação lassa entre as cenas e menos a qualquer pretensão de videoclipe. Guia-se a atenção às peripécias insalubres em que os personagens se embrenham, ao caos de sua existência, não através da história que se conta, mas pela associação pouco retesada que se constrói entre as imagens. Eis porque a continuação ilumina o antecessor de modo tão especial: o que antes era suposição se mostra como certeza. Ao oferecer menor atenção à experiência com as drogas, o segundo filme torna mais claras certas pretensões.

Agora, as duas obras surgem em seu real interesse. Ao se atrelar mais claramente ao “filme de trapaça”, a segunda película revela, frente à primeira, filiações mais produtivas. Tudo gira em torno da questão: quem vai enganar quem? Decerto, era difícil, mas não impossível, discernir esta pergunta em 1996. Mas, até o ponto em que se torna palpável, quem poderia imaginar a fuga de Renton? Aliás, como expor sobre o que se trata todo o primeiro filme antes dele alcançar o seu desfecho?

Em 2017, os truques sobre truques não permitem esquecer que, por lidar com uma película sobre vigaristas, sua chave se encontra sempre no engodo. Vinte anos atrás, acreditamos que o eixo deste trabalho se encontrava alhures, engano que somente o reencontro proporcionado pela continuação corrige. Ela, afinal, retorna não apenas o contato com os personagens: revive o sentido da obra.

Não teria este gênero ligado à trapaça encontrado sua expressão máxima no “filme de assalto”? Tipo curioso este, em que se acompanha os bandidos enquanto atravessam um martírio do pior tipo. Como indício de sua habilidade, conduzem projetos praticamente irrealizáveis; planos complexos que, embora tenham tudo para dar errado, terminam miraculosamente funcionando. Porém, apenas para resultar numa imensa frustração.

Veja-se Rififi (de Jules Dassin, 1955): o roubo a uma loja de joias envolve uma elaborada engenharia, capaz de coordenar os horários de toda a vizinhança. Sem esta precisão, como se tornaria possível cavar um buraco que, do andar de cima, conduz a um cofre e aos seus dez milhões de francos? Eis que os ladrões se veem frente ao produto de seu esforço tão somente para se deparar com uma recompensa que jamais utilizarão: tudo por culpa de um comparsa desastrado que, ao preço de uma mulher, torna um anel o indício que entrega o bando.

Ou, quem sabe, O Segredo das Joias (de John Huston, 1950)? Ali, vemos outro assalto aparentemente perfeito, conduzido pela coleção mais diversa de criminosos, em sua compilação de habilidades, mas também de vícios. O cérebro que planeja a empreitada termina derrotado pela sua fraqueza por moças jovens; um advogado bem-sucedido se mostra ganancioso o suficiente para pôr todo o plano a perder; um intermediário fraco, frente à primeira ameaça, entrega o seu próprio bando.

A precisão com que estes ladrões desenvolvem seus planos se contrapõe à irracionalidade com a qual parecem fadados a lidar. Há lógica, mas sempre vizinha à insensatez. Alguns dirão: não há nada que tenha ocorrido após a flexibilização do cinema durante os anos 60? Decerto, a partir de então se pôde burlar a obrigação de destruir estes ladrões heroicos. Algumas vezes, reserva-se a liberdade até mesmo de glorificá-los, como na leva de filmes – como Cães de Aluguel ou Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes – dos quais o próprio Trainspotting participa.

Um exemplo antigo: em Os Implacáveis (de Sam Peckinpah, 1972), Doc e Carol, pelas consequências de outro roubo malsucedido devido à estupidez, alcançam o México na boleia de um caminhão, sabendo que deixar para trás um rastro de corpos os obrigará a fugir para sempre. Podem os 30 mil dólares entregues ao motorista que acabaram de sequestrar comprar a sua lealdade depois de tantas traições atestarem a indiscutível ganância humana? Talvez tenham de aceitar sua luta pela sobrevivência, vislumbrando no horizonte apenas um único dia.

Frente a maquinações tão precisas, não se duvida que Trainspotting nos guiava até o seu desfecho de forma indiscutivelmente mais caótica. Havia naqueles viciados uma inegável astúcia, de fato. Todavia, qual deles se mostraria capaz de percorrer o trajeto deste tipo de bandido, o engenheiro do crime? Aquele quarteto parecia ter dificuldades até mesmo para se manter de pé. A despeito de sua inteligência, tais personagens se definiam pela incapacidade de chegar tão longe.

Desaparece a imagem do roubo milimetricamente cronometrado. As conexões que brotam não apenas na trapaça final, mas em todo o filme, apresentam-se de modo muito mais frouxo. Não há nenhum grande plano. Nada no desenvolvimento da película conduzia ao seu desfecho. Os viciados se tornavam traficantes amadores apenas porque outro criminoso descuidado, que terminara por comprar dois quilos de heroína de marinheiros russos, não tinha coragem para vendê-los sozinho.

Se Trainspotting flertava com a beirada da sociedade, fazia-o nesta flexibilidade de acontecimentos desarticulados. Numa confusão manifesta, sugerindo que se tratava somente de uma questão de tempo até a gangue tropeçar nela mesma, tinha-se a sensação de se estar diante de personagens como os de Estranhos no Paraíso (de Jim Jarmusch, 1984). Ao menos até o instante em que o roubo de Renton, pelo ferrão da cobiça, nos desperta para o dilema de toda decisão. Surge a marca do demônio que opta pelo mal com absoluta convicção, deixando de lado toda escolha desconjuntada.

Esta frouxidão ao longo do filme nos surpreende em 1996, mas não agora. Depara-se, aqui, com um desfecho previsível. Sabemos que alguma trapaça vai ocorrer a partir de um instante preciso, numa virada que começa após uma rememoração forte: o monólogo de “escolha a vida”. No affair entre Mark e Veronika, sente-se que o desfecho pertence à jovem, com um golpe muito maior, de cem mil libras obtidas através do financiamento para certo projeto de gentrificação – ideia apropriada por gatunos, esta que é, ela própria, a trapaça das trapaças.

Falta apenas descobrir quando tudo ocorrerá. Eis aí o imbróglio. A fim de concretizar seus próprios desdobramentos, o segundo filme se decide por tomar de volta a primeira película, tarefa que ocorre em mais de um nível da imagem. Para além de todos aqueles que já se descreveu, há outro reencontro em T2 Trainspotting: um em que se constrói certa conexão explícita. Em conjuntos de flashbacks, parece imperativo ver certas cenas em efetivo, como que para construir a identidade responsável por nos ensinar que, afinal, tudo será como antes.

Estas capturas guardam o primeiro filme não em abstrato, mas literalmente. Este trajeto existe não somente por uma primeira obra que, retomada na memória, permite a apreciação da segunda. Nas lembranças de Spud, assiste-se novamente ao atropelamento de Renton, uma das cenas mais marcantes do antecessor. Próximo ao fim, testemunha-se outra vez o roubo que guia todo o primeiro filme, numa obrigação por acionar a imagem de Renton fugindo daquele hotel com suas 16 mil libras.

Somos convidados até mesmo a cenas que, no passado, se decidiu excluir. O processo se intensifica quando Spud se desdobre escritor. Frente à tal literatura, Franco retém certo instante – inserido no original de Irvine Welsh, mas ausente no primeiro filme – quando se depara com seu pai. Não apenas ele, mas também Mark revive este momento. Mas, projetado contra o fundo de um plano em curso no presente, esta memória ilustra com clareza uma experiência coletiva, compartilhadas pelos três, decerto – mas também por todos nós.

Não é casual que T2 Trainspotting lide não apenas com o filme que recupera, mas também com um que temos de enxergar. Retomadas definem qualquer estilo. Neste gênero, o traço que o elabora – o drama moral que ronda todo “filme de crime” em sua análise sobre as escolhas e suas consequências, sobre a própria natureza de uma decisão – percebe-se acessível à luz, e nunca oculto. Como seria de outra forma? Quando se encara a importância de se ater àquilo que compõe o mundo, percebe-se o absurdo de buscar o estilo no abstrato, ao invés de no próprio expressado.

A qualidade do gênero se encontra nestes instantes em que uma potência surge, e seu valor reside em sua impureza. A visita nunca se mantém intacta: algo retorna, enquanto difere. Porém, ao observar a “cena da projeção” em T2 Trainspotting, percebe-se o quanto o filme tropeça em certas contradições nítidas do cinema contemporâneo. Em 2017, esta continuação opta por se guiar através de um conforto desnecessário. Contrário ao espírito destes vagabundos imprevisíveis, assenta-se menos em seu caos, e mais na comodidade de certo caráter que se reconhece sem dificuldade.

Vê-se uma recapitulação, mas não uma diferença. A imagem que projeta o filme para Fraco, para Mark, para Spud – e também para nós – lida com uma crise que parece intrínseca a certas obras. Elas se debatem, em sua busca por uma direção para onde poderiam seguir. Contudo, não tem certeza se conseguem encontrar a saída para a enrascada na qual elas próprias se meteram. As repetições de T2 Trainspotting revivem algo: só não sabem como desdobrá-lo. Há perigo aí, como no gosto infantil que se delicia apenas com pratos já conhecidos.

Que tal reencontro se retenha no corpo dos atores devido ao tempo nele inscrito; que se reviva certo traço de época, inscrito na habilidade com que se coordena a montagem; que se afirme um gênero em suas marcas fundamentais, garantindo seu sentido através desta recuperação: contudo, por que repetir o mesmo desfecho? No final, Mark e Simon – ambos agora enganados – tornam-se praticamente idênticos a Renton e Sick Boy. A cena em que se repete um gesto impossível no começo, mas agora viável – deixar a agulha tocar um vinil de Iggy Pop – nos constrange.

Decerto, cada um dos elementos da imagem indica um caráter progressivamente mais abstrato. O quadro registrado pela câmera é aquele que se vê: basta enxergar. O indício da construção de associações inscritas no corte se pode repetir. O sabor de um gênero se disfarça habilmente, fazendo até mesmo crer que um filme não seja aquilo que é. Mas a retomada de um final que conduz ao começo, Mark Renton escutando Lust for Life, parece uma armadilha perigosa de cair.

 

 

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Toni Erdmann, a máscara de tempos difíceis

João Martins Ladeira

Quando se encerra a exibição de Toni Erdmann, o expectador talvez se depare com a inútil tentação de interpretar o filme. Ato natural, exposto como se encontrou a situações absurdas, destas que produzem na face um sorriso nervoso frente a alguém que nos envergonha.

Neste engano, a primeira aposta apontaria para a suposição usual: o traço essencial do filme talvez se encontre na tentativa de reaproximação entre Winfried e Ines, pai e filha em desconexão devido a rupturas familiares e a diferentes objetivos de vida, fruto da escassa ambição de um quando comparada a do outro.

Segue-se por tal hipótese e não se chega a lugar algum. Se existe algo a se apreender, não está na psicologia dos personagens e no suposto significado que ofereceria à obra; reside não em alguma ideologia em torno da qual se engajaria o público. Toni Erdmann toma parte num tipo muito específico de cinema, movido por outros propósitos.

Não se trata de retirar a capa das ações a fim de desnudar o que estaria logo abaixo. Suas intenções se descortinam de imediato. Este entendimento se encontra numa demonstração em curso através de traços um palmo a frente do nariz de qualquer homem tragado pela contemporaneidade, e que o filme, através da imagem, apresenta sem representar.

Distante dos conflitos inerentes à ação, seu centro está no inapto disfarce de Winfried, nos efeitos proporcionados sobre todos os demais personagens por um homem que se passa ridiculamente por outro, nutrindo a expectativa de que esta máscara se mostre convincente. Esta farsa fadada ao fracasso revela os limites óbvios da realidade contemporânea.

De fato, ninguém acredita que Toni Erdmann ocupe o cargo de cônsul da Alemanha, que trabalhe como coach de quem quer que seja, que tenha um amigo com uma tartaruga recém-enterrada. Protagonista de situações diversas, infiltra-se na Páscoa de uma família romena e convida a sua filha à interpretar uma canção de Whitney Houston – cuja letra por si já beira o nonsense. No ápice de seus esforços, encarna um Kukeri nu em uma festa na qual estão todos convidados a abandonar as suas roupas.

São enredos que mais parecem extraídos de um filme do Monty Python. O que significam? A resposta é simples: nada. O que motiva Winfried a voar para a Romênia a fim de orquestrar este pacote de ironias? Seu impulso se associa à morte de seu cachorro, pouco depois de uma visita frustrante de Ines aos pais.

Contudo, não há nada no filme que ateste uma relação de causa e consequência entre ambos os acontecimentos. O elo está apenas numa suave coincidência temporal, sem que se consiga justificar qualquer vínculo entre ambos os fatos. Sem a coordenação dos atos, retira-se de Toni Erdmann o alicerce de um cinema calcado na ação.

Em seu lugar, abre-se espaço para algo mais. De fato, sem vínculos intrínsecos entre seus eventos, torna-se consequentemente impossível afirmar que exista qualquer “tese” em Toni Erdmann, que se identifique algum argumento por defender ou visada para apontar. Em nenhum ponto esta postura fica mais clara que neste seu recurso ao disfarce.

Não existe marca mais antiga na arte dramática. De Homero a Shakespeare, personagens trafegam em circunstâncias que não controlam vestidos como outros, em busca de uma solução aos dilemas que os motivam. Em todos estes exemplos, luta-se pela necessária reconciliação final entre partes até então distantes.

No filme, ocorre exatamente o contrário. Quando se encerra, temos Winfried e Ines no mesmo ponto em que se encontravam no início: em meio à sua desconexão emocional, às máscaras disparatadas, à mudança dela de Bucareste para Singapura apenas para viver a mesma vida num outro cenário. Não se reaproximam, não compreendem que o mais importante da vida é o amor, a família ou qualquer clichê.

É bem possível que a versão norte-americana, programada para breve, encontre um desfecho deste tipo. No filme de Maren Ade, esta representante da “Escola de Berlim” do cinema alemão, o recurso a um dos elementos narrativos mais convencionais da humanidade termina sem qualquer solução: como, aliás, toda a trama – por si, simplesmente irrelevante.

Existem fatos, mas não existe drama em Toni Erdmann. Tente, caro leitor, narrar a história do filme e veja o embaraço em que vai se meter. Uma das coisas que o cinema moderno nos ensinou reside em deslocar a obrigação do desenrolar da narrativa, substituindo-a por outras possibilidades.

No caso de A Terra Treme, Ladrões de Bicicleta, Paisà e outras obras que inauguraram esta vertente, o que se estava a apresentar era uma identidade entre a imagem cinematográfica e as potências da vida, estas que descartam a encenação a fim de revelar uma duração cara à realidade. Esforço que, como Marco Abel demonstrou (em The Counter-Cinema of the Berlin School), Maren Ade, entre outros, retoma.

Se naquelas obras do neorrealismo italiano existia uma possibilidade de reconciliação num mundo em que ela se mostrava tão necessária, de um humanismo em tempos desumanos, em Toni Erdmann resta apenas a confusão. No lugar desta outra expectativa, surge a dificuldade de conciliar aquilo que, no real, parece também inconciliável.

A nossa confusão é a confusão dos próprios personagens, traço que nos une pelo fato de compartilharmos todos um mesmo tempo. Ora, não se consegue entender as motivações de Ines para práticas em relação às quais nem ela própria encontra justificavas. A razão é simples: elas não existem.

Ines sabe exatamente as consequências de seu trabalho – o maior shopping da Europa, sem ninguém com dinheiro para comprar nada; a casa pobre que se vê do prédio de escritórios sofisticados; os executivos romenos que perderam a conexão com seu país.

Nossa personagem se entedia com as festas ridículas que participa. Não acha muita graça no seu comparsa de trabalho que, entre um champanhe e um canapé, desdobra-se na tarefa de amante, sempre com zelo, para que Ines não perca a sua motivação profissional.

Seguindo o manual de instruções do mundo, Ines – como todos nós – trabalha porque deve trabalhar; diverte-se porque alguém lhe disse que a diversão é não apenas necessária, mas indispensável, embora tenhamos dificuldade de encontrar muito sentido nestes atos compulsivos.

Se os eventos que constituem o filme soam absurdos, as razões residem na própria incapacidade de identificar alguma lógica na conduta dos managers e dos CEOs, em suas planilhas de desempenho e em suas avaliações de performance, estas que se espraiaram perigosamente para a vida cotidiana.

Toni Erdmann parece surreal, e a culpa não é do filme. É do mundo. Nossa sociedade contemporânea, obsecada com dois valores – trabalho e lazer –, tornou-se ridícula. Em parte, Ines é cada um de nós e nenhum de nós, na obrigação de arcar com o peso de uma era injustificável.

No giro da engrenagem que nos condena todos a produzir e a consumir, definem-se as dimensões de nosso tempo: trabalho e lazer, estas duas obrigações tão complementares quanto irreconciliáveis, nutrindo-se da própria lógica que as constroem sem qualquer relação com as necessidades dos homens, com seus desejos ou com suas escolhas.

Filmes como Toni Erdmann realizam a proeza de exercitar formas específicas para lidar com o mundo nos termos a partir dos quais a modernização do cinema nos estimulou a fazer. Indicam a tentativa de desvendar, pelas circunstâncias expostas na tela, o nosso vínculo com a realidade, recorrendo tão somente a um objeto específico e ao seu manuseio.

Assentam-se no carinho com um traço do real, este que tais obras nos permitem apreender, retendo-o frente aos nossos olhos. A confiança nas coisas, no mundo, no tempo que a imagem em movimento retém, numa conexão que nenhuma outra arte pode proporcionar: esta natureza do meio dispensa qualquer “tese”.

A glória de Toni Erdmann reside em abandonar a pretensa expectativa de representar o que quer que seja, de lutar com a imagem em busca da fidelidade ao fato. O conjunto de obras da qual participa torna visível um determinado conjunto de afetos, de um modo, porém, ainda não constituído.

No caso deste filme, este traço se localiza no absurdo das ações desempenhadas frente a nós, na maneira como, pela sensação compartilhada em torno daquele riso nervoso, lida-se com as dinâmicas do tempo em que vivemos. Não existe “sentido”, “argumento” ou “mensagem”: existe somente – como se fosse pouco – experiência.

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O preço de um aplauso: ‘O Grande Truque’

João Martins Ladeira

É um truque muito simples. O ilusionista desaparece; desperta certa ansiedade na plateia; por fim, retorna, saciando todas as expectativas. Repetidamente executado, torna-se um prazer previsível. A este, soma-se um peso adicional: a destruição que, em si, congrega.

Queimando seus dias, dois irmãos desempenham seu papel no “Homem Transportado”. Uma noite, o primeiro entra na caixa e o segundo sai dela; na outra, trocam-se as posições. A força da mágica implica enganar o mundo, ocultando a identidade de um e expulsando-o da vida.

Seu oponente responde à altura: encontra uma máquina que exige a sua própria destruição. O apetrecho o põe em constante dúvida: a técnica o torna dois, exatamente como a natureza fizera com seu rival. Porém, um deles terá de se afogar, enquanto o outro ressurge.

Quem é quem? “É preciso coragem para subir naquela máquina toda noite, sem saber se você vai ser aquele que ressurge no palco ou o homem na caixa”. Ambos se atam pelos truques que não param de repetir, pois não há outro que consigam inventar.

I

Na obra de Nolan, “O Grande Truque” – na aparência – ocuparia um lugar restrito. Soaria como uma repetição de temas que lhe são caros. De novo, se estaria diante de dois oponentes em confronto. Mas não se trata disso.

De fato, “O Grande Truque” versa sobre a magia, sobre a ilusão: refere-se à arte e aos artistas. Surge o tema: qual o risco da verdade num mundo que precisa se guiar pela criação? A resposta reside no vínculo não apenas de dois personagens, mas de quatro.

Têm-se aqueles dois pretensos artistas. Um depende de um truque que se assenta num fato natural, mas se suporta somente pelo autoflagelo. Outro, numa técnica maligna e homicida. A seu lado, suas duas mulheres, ambas criaturas verídicas.

Veem-se os personagens: Borden e Angier, Sarah e Olivia. A primeira magia se assenta nos gêmeos que tomam o lugar um do outro não apenas no interior de um espetáculo, mas – mais importante – na vida que vivem fora do palco.

Precisam submeter toda a sua existência ao truque para tornar tal mágica possível. Inventam não apenas um engenho, mas também um engenheiro, Fallon, e decidem, num supremo ato ascético, sofrer o peso de anular a si próprios a fim de conduzir a sua arte.

Na ânsia do aplauso, o outro ilusionista elabora, a partir da tecnologia, efeito semelhante. Uma máquina permite a sua duplicação, mas não sem custos. Tem de se suicidar a cada noite, permitindo que, sempre, um duplo recém-criado tome seu lugar até o próximo espetáculo.

Apaixonados por suas peripécias, movem-se por um pretenso desejo de superação. Obsessão natural para Borden, teria de ser construída para Angier, alimentando-a com a vingança pela morte de sua esposa, dando origem, todavia, a uma vontade que a ultrapassa.

Contrapostas a ambos, cada um dos mágicos se depara com uma mulher – uma esposa e uma amante – ambas atentas ao desejo de seus homens. Dramático, de fato, torna-se o destino de Sarah.

Ela que percebe – talvez –a identidade entre o ilusionista e o engenheiro, prefere se sacrificar frente à incapacidade de arrancar-lhes a verdade. Olivia, por sua vez, escorrega de Angier para Borden devido à insistência do antigo amante para que minta àquele que se tornará seu novo.

Num ato idiossincrático de traição premeditada, troca de posição apenas para encontrar outro indivíduo igualmente incapaz de – segundo o seu julgamento – entregar-se a si próprio. Abandona Borden, afinal, por distinguir nele alguma inabilidade para manifestar seu luto.

Esta busca por autenticidade massacra a todos. Torna-a irreconhecível quando, enfim, surge. Sarah se dilacera por escutar, cada dia de um gêmeo, que a ama. Martiriza-se quando sente que tais palavras são verdade e quando não são.

Se, próximo do fim, Sarah escuta que Borden a ama, mas “não hoje”, Olivia, antes de partir, ouve do mesmo homem que a ama verdadeiramente. Fatos reais, que, na dúvida que nasce da busca por certezas, anula a chance de uma vida sem partições.

A sinceridade, incapaz de se estender à vida, sacrificada que fora pela repetição ascética, soa insatisfatória tanto para uma quanto para a outra mulher. “Ambos amávamos uma delas. Ambos tínhamos metade de uma vida. O bastante para nós, mas não para elas”.

II

Decerto, aqueles dois homens, como mágicos, vivem do imperativo de ludibriar seu público. Mas não apenas. Assentam-se na expectativa de enganar também um ao outro, entremeando-se em engenhos que terminarão por se esgotar apenas com a morte.

A máquina de Angier decorre de uma viagem a América, que, contudo, resulta de uma sugestão falsa de Borden. Ilude o rival com o engodo contido no nome de Tesla, moeda para salvar Fallon, seu suposto engenheiro.

Na verdade, Tesla e Borden jamais haviam se encontrado. A associação entre o mágico proletário e o inventor nada mais era que um encontro fortuito durante uma exposição de ciências, isca suficiente para fisgar o oponente.

Há o diário falso de Borden, escrito para Angier. Em meio a códigos que apenas escondem outro contratempo, o segundo se frustra frente ao texto roubado por Olivia. Mortal, porém, torna-se a armadilha que conduz o primeiro a um dos cadáveres do opositor, e, daí, à forca.

Qual a razão de tanto investimento? Se Angier surge como um homem movido por vingança, tal desforra vai se tornando um propósito distante. Por fim, importa apenas a aprovação das massas, pautada por critérios que se confirmam através do regozijo.

Ele mesmo afirma: pouco importa o nó em sua esposa morta, mas apenas o segredo do “Homem Transportado”. Borden, sabendo da superioridade de seu truque, não resiste ao embate com sua contraparte. Anular o outro permitiria ao sobrevivente ficar, enfim, a sós com a turba.

Contudo, não há triunfo, apenas destruição. O gêmeo morre, e, com ele, o próprio truque. Angier é assassinado, mas não apenas pelo tiro do rival. Destrói-se diversas vezes, em todas as noites em que um de seus duplos se afoga naquele tanque.

Se toda a miséria de Boden reside exatamente no fato de que ele nunca se trai; se sua dedicação é extrema, a ponto de destroçar o corpo do irmão e a vida da esposa; motiva-o pensar em si como um grande artista.

Um autossacrifício absoluto, nos diz, se tornaria o único modo de se livrar da própria matéria. Postura que, no outro extremo da mediocridade, termina por se encontrar com as decisões de Angier.

Este outro homem se vê como um tipo que entende a plateia. Sabe que ninguém ignora o quanto o mundo é, de fato, sólido e miserável. Ainda assim, acredita-se capaz de produzir um engodo que arranque uma expressão de espanto, mesmo que ela dure apenas um segundo.

Suas atrocidades se mostram típicas aos anões que se pensam acima da multidão, apenas para se mostrar a nós em toda a sua degeneração. Artistas após certo ponto incapazes de criar, atrelam-se ao que já é, e não ao que poderia ser.

De um lado, a mutilação – metafórica e concreta. De outro, a troca da criação por fixação. O truque assassino, Angier nos diz, será o seu último. Afinal, ele sabe que se trata de um desejo: desejo obsessivo, mas, ainda assim, desejo.

E não tarda a escutar: “obsessão é um jogo para jovens”. Angier sabe que, se pôde um dia criar, hoje já não o consegue mais. Está velho e desistiu disto que é arte. Surge, assim, a última questão. E Nolan?

III

Este verdadeiro artista mantém-se sempre nesta linha tênue entre abordar o falso, sem deixar de se ater à expectativa de representar perfeitamente a identidade entre a narrativa e alguma suposta realidade. Nolan, como seus mágicos, nos dá aquilo que queremos.

Não pode haver deslize em seus enredos, do mesmo modo que não pode existir o inexplicável em seus filmes. O gênio de Nolan reside neste limiar. Decerto, não há muitos diretores, hoje, capazes de levar o cinema contemporâneo a um grau tão preciso de sofisticação.

Contudo, o fim de cada espetáculo sempre nos deixa com a sensação de que Nolan ri de nós, entendendo a felicidade do público em compartilhar da plena identidade que se fecha no círculo de uma explicação plausível.

Decerto, alguns desfechos se mostram incômodos aqui e acolá, como o pião de “A Origem”. Mas, exatamente no momento em que poderia atacar o sonho verídico com mais força, hesita. Por fim, o diretor pende para o vínculo de causa-consequência.

Nosso artista zela por um universo ordenado com perfeição. Pareceria impossível para Nolan – e também para o cinema contemporâneo – lidar com a abertura para o falso; com um espírito moderno que, com seu gênio, este criador tanto se esforça por sufocar?

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Memória, tempo, invenção: Amnésia e as peripécias da forma

João Martins Ladeira

Entre Following e Cavaleiro das Trevas, Christopher Nolan explorou lindamente as diversas facetas contidas no tema da inimizade entre dois homens. Amnésia, sua primeira conexão com o grande público, definiu os termos desta preocupação, indicando, no vínculo entre Leonard e Teddy, direções posteriormente exploradas.

Contudo, frente às outras oportunidades em que Nolan se debruçaria sobre o elo íntimo entre adversários, Amnésia se destacava pelo tratamento dado a um tema que, de modo assim tão direto, não mais retornaria: a memória. Aqui, o ser do passado e o contraponto entre dois se associavam diretamente, como uma batalha travada no tempo pela possibilidade de criação.

O filme sugere um labirinto, a construção sofisticada de uma narrativa que se move em duas direções distintas: uma, em preto e branco; a outra, colorida; esta segunda, absolutamente invertida. Contudo, a complexidade reside não só numa história em ordem avessa, ainda que o controle sobre esta técnica angariasse imensa e merecida atenção ao filme.

Atordoante se torna a busca cega de Leonard; mais importante, a forma como ela se pauta por pistas frágeis e incertas que o personagem coleciona. Em sua busca por certo John G (ou James G), homem, branco, ele agrupa evidências que, como descobrimos, terminam talvez por se tornar necessárias exatamente porque falsas.

Testemunha do assassinato de sua esposa em meio a uma agressão que lesa o cérebro do herói e o impede de construir novas recordações, Leonard se afirma como a vítima que toma as rédeas de sua condição e procura sua vingança.

Prossegue em sua investigação guiando-se por um método impressionantemente precário. Carente de lembranças, conta unicamente com notas tatuadas sobre o corpo e fotos acumuladas por uma Polaroid. Através de ambas, constrói seu guia, impulsiona-se adiante.

Teddy, seu contraponto, exerce uma função dúbia. Durante o filme, auxilia Leonard; embora, progressivamente, dê indícios de que controla um conhecimento sobre o passado que o próprio herói, devido à sua lesão, jamais acessará.

Em sua busca para a solução do crime, Leonard descobre que a barreira inexpugnável para esta verdade, por alguma razão que nunca teremos certeza, passa por Teddy. Sua execução se assiste no primeiro instante. As razões se precisa aguardar um filme inteiro para entender.

Rapidamente, percebe-se neste contraponto um falsário, pronto a apresentar versões sempre parciais de histórias incompletas. Suas sugestões terminam por direcionar Leonard para um rumo nem sempre benéfico para o herói.

 

I

A preocupação entre a linha divisória entre mentiras e verdade pareceria, portanto, o centro de Amnésia. De imediato, Leonard sugere um homem verídico, em busca da estabilidade típica à revelação contida na certeza indiscutível. Talvez: mas só quando se enxerga apenas parte da questão.

A indagação sobre o falso e o exato se encontra não somente naquilo que os personagens dizem ou fazem. Reside na forma de Amnésia. A virtuosidade da ordem inversa – a despeito da confusão possível de criar para os desatentos – elabora uma rede precisa de eventos perfeitamente intrincados.

Não há qualquer erro na conexão entre as partes do filme. A quebra de sequencialidade não abstém Amnésia de manter, firme, seu centro. Na vertigem desta coordenação ímpar, toda a película se constitui como uma tentativa convicta da manter a unidade lógica do cinema clássico.

Para compreender – e deslumbrar-se – com Amnésia basta reorganizar as sequências descontínuas para visualizar um fluxo claro de acontecimentos. Na fronteira entre o primeiro e o último plano há concatenação, certeza, verdade. A força da gravidade atrai as diversas partes que se desdobram numa ação contínua, convocando uma imagem do real.

Próximo ao fim da projeção, Teddy expõe – a Leonard, mas também a nós – a natureza deste homem que sabia quem era, mas não sabe mais quem é. O herói teria se transformado em um pistoleiro manipulado, pronto para o assassinato, desde que creia que se trata de sua vingança.

Porém, em que se baseia a certeza de que esta, entre tantas versões já expostas, seria a verdadeira? Outras delas já não haviam sido contadas a Leonard – e ao público? Este poderia ser somente mais um entre outros rodeios.

Acredita-se nesta última versão unicamente por culminar o desenvolvimento da narrativa. Porém – e esse se torna o grande truque de mãos de Nolan – por qual razão considerar esta última versão como definitiva?

Uma crença desta natureza se assenta simplesmente no fato de se tratar da última informação registrada. Afinal, na lógica progressiva da ação, o ponto em que uma narrativa culmina nos deveria expor alguma verdade. Contudo, como sustentar esta posição quando havíamos nos extasiado exatamente pela película carecer de ordem?

 

II

Sugeriu-se que a quebra de sequencialidade em Amnésia explicitaria as circunstâncias em que Leonard se encontra mergulhado. Identificado com o seu herói – esse herói imperfeito, marcado por limites – o filme seguiria por pontas soltas, uma vez que o todo havia se tornado inacessível a nosso personagem.

Talvez, mas apenas em parte. A narrativa ilustra não apenas a mente defeituosa de Leonard, mas a potência de criação de Teddy, este homem sempre pronto a se esgueirar para além da verdade. Aqui, a imagem exerce a autonomia de relativizar – sem nunca quebrar – os cânones da ação, atenta ao imperativo de fidelidade caro ao material cinematográfico.

Teddy se mostra como invenção; e a imagem o acompanha em seus exercícios despudorados de criação. A manutenção da força centralizadora – que, enfim, prevalece – onde estaria ela, então? Em Leonard, no outro extremo? O homem verídico manteria a coerência interna, ainda que a imagem queira rachar as premissas da própria verdade?

Faria sentido. Não soaria casual, assim, que Teddy pareça fadado a encontrar a morte; que sua destruição aniquile, consequentemente, a possibilidade do engodo.

Mas, curiosamente, o engano prossegue. Continua fora da tela. A fala que chega até nós no final: “onde eu estava?”, bem poderia repetir a indecisão após a execução de Teddy, logo no começo. É preciso ter algo para depois. Embora, em seu interior, Amnésia se ordene por aquela lógica meticulosamente concatenada, resta ainda as suas margens.

Antes do princípio – o território ao qual nunca se terá acesso – desmonta-se o formato de ação que o filme se esforçou meticulosamente em manter. Neste extremo, encontra-se a beleza maior de Amnésia, que seu desenvolvimento invertido tão somente anuncia, a sua efetiva virtuosidade. Nunca, jamais, se vai saber o que de fato ocorreu entre Leonard e Teddy.

Está-se realmente diante de um policial que tomou parte em uma vingança; mas, depois, percebendo que ela permaneceria para sempre, resolveu tomar o seu quinhão de benefício? A resposta se encontra na memória inacessível, que não presenciamos nem em ordem direta nem inversa, que não vemos ou veremos jamais.

Esta incerteza se estende para antes do filme, mas não apenas. Reside também para depois dele. Se a derradeira versão de Teddy estiver certa, Leonard prosseguirá aquela sua busca por outros meios. Caso esteja errada, o herói terá apenas cometido mais um assassinato; porém, será o último, de fato.

Caso Leonard encerre esta busca, Teddy estaria mentindo; continua-la por outros meios nos indicaria a verdade. Contudo, este antes e este depois se mantêm como um território impossível de explorar. Amnésia não comporta sequências ou prólogos.

 

III

Todavia, seria Teddy, de fato, o único personagem ávido por invenção? Leonard, em sua busca por alguma verdade, precisa se concentrar naquele seu método que – acredita – mostra-se perfeitamente objetivo. Nada soaria mais absurdo: suas tatuagens e suas Polaroids se transformam em fatos que, por um lado, em parte registra; que, por outro, produz.

Uma destas invenções nós assistimos claramente: Leonard produz um John G para caçar. Até então, as informações que Teddy revela – ou inventa – haviam se tornado o substituto para as memórias perdidas de Leonard. Todavia, em certo momento, a direção se inverte: o próprio Leonard busca um rumo seu, e nem sempre esta procura passa por uma verdade.

No fim, Leonard cria nada menos que a rota a colocá-lo em confronto mortal com Teddy. “Não acredite em suas mentiras”, escreve em uma de suas fotos. A placa do carro de seu oponente ele tatua na perna. A foto que celebrava um possível culpado, Leonard destrói, deixando o caminho vago para um ato equivocado; mas, em sua invenção, estranhamente correto.

As informações de Teddy terminam por se submeter às notas de Leonard, sua dimensão autônoma de ação. Estas notas apontam para várias direções: o registro de um automóvel; uma licença de motorista; as informações sobre a idade, o sexo e a cor do assassino.

Em outro nível, esta ordem de Amnésia – tão repleta de sentidos – indica aquelas criações de Teddy, mas não só. Em cada sequência fora da linearidade, assiste-se às invenções de oponente, decerto; e também algo mais. Estas direções entrecortadas apontam para os vários interesses específicos inventados por Leonard.

Cada direção se encontra numa tatuagem; numa foto; numa nota. E cada eixo se torna uma sequência do filme. Encontrar Natalie e as informações que guarda; descobrir quem é o homem cujo nome está no bolso de seu paletó; compreender quem é esse que uma das suas fotos diz para não confiar. Cada item se conecta às sequências que negam o fluxo à frente.

A ordem invertida indica – também – a dispersão das muitas experiências de Leonard, atendo-se, nelas, exatamente àquilo que o direciona. As diversas tatuagens apontam para vários rumos desconexos de memória, como um quadro reconstruído graças não a uma visão do todo, mas devido somente à vontade que reside na parcialidade.

Nas cenas, não há qualquer ponto de vista capaz de unificá-las. Porém, este traço termina por se tornar não um limite. Decerto, estas cenas se esgotam em si mesmas, evitando qualquer recordação totalizante. Disso resulta uma vida que se vê unicamente de determinado ângulo, obrigatoriamente parcial e incompleto: não um ônus, mas um imenso benefício.

Apreender a dimensão do tempo presente em Amnésia fracassaria caso se tentasse identificar estas imagens como lembranças em termos psicológicos. Os eixos desconexos não são a memória de Leonard; são a do mundo. Representam imagens como manifestações do tempo; neste caso, de um tempo desarticulado, desencaixado.

Leonard se apropria da memória, mas nunca de lembranças. Dada a sua lesão, isto está além de sua capacidade. No fim, esta memória que o envolve termina confiscada por outra intencionalidade, guardada por outro homem: Teddy, seu oponente. Esse seu contraponto envolve o herói: Teddy lembra coisas que Leonard não poderá nunca retomar.

Contudo, o herói se nega a ater-se a estes limites. Seu orgulho com aquele “método” residia em construir uma forma de lidar com sua “condição”. Sonha com a descoberta de uma fórmula fixa para descobrir a tão cara verdade. Na falta de lembranças, elaboraria registros que a substituiriam. Pensa em si como homem verídico. Descobre-se coisa bem diferente.

Leonard se remete a idades do tempo, que presenciamos quando assistimos ao filme. Suas tatuagens indicam a sua intenção. Expõem sua vontade, a partir da qual toda a montanha pregressa de evidências se ordena. Assim, tornam-se necessariamente desconexas, e, por isso, sua dissociação retoma o tempo como potência, como liberdade, como criação.

 

IV

Se a beleza do “método” de Leonard reside em oferecer integração a partir de uma perspectiva limitada, Sammy Jankis se torna o melhor exemplo desta distorção por ele criada. Seu caso oferece direção a um eixo de intenções, impossível de identificar como verdade.

Uma das tatuagens diz: “lembre-se de Sammy Jankis”. Uma lembrança retomaria a visão totalizadora dentro de um fluxo linear ao qual se teria acesso. Como já se sabe, isto, para Leonard, representa uma porta fechada, tornando tal opção irrealizável.

A questão passa a ser a sua impossibilidade de acessar algo localizado para além daquelas bordas deste filme. Como consequência, precisa inventá-lo. Como o melhor indício, Jankis, para além desta fronteira, transforma-se numa opção entre duas possibilidades.

Por um lado, se tornaria um homem sem a capacidade de organizar um sistema coerente para organizar suas ações – ao contrário de Leonard – e que termina envolvido em um teste, no qual o desejo pela verdade nutrido por sua esposa resulta na destruição dela própria.

Por outro, Jankis se constitui tão somente como uma distorção que retoca a orientação dada por Leonard a estes seus momentos. A mulher de Leonard seria a esposa diabética; Jankis, um homem solteiro. A resposta, jamais saberemos.

Da ilusão de verdade, surge a vontade que a permite ultrapassar. Isolado, perdido, este personagem se encontra sozinho como poucos no cinema. Porem, não significa que se mantenha estático: ao contrário. Sua falsificação nega o maior de todos os engodos.

Profundamente ativo, nosso herói se move como pode. Consegue escapar do passado, ater-se ao presente, dirigir-se somente ao futuro. Está sempre em um dos pontos em que este agora se forma em direção ao depois, e nada mais.

Revela sempre uma imensa capacidade de agir. Uma ação inconsequente, guiada para o próximo ponto, sem a obrigação canhestra e pesada de usar a lembrança para se orientar. Sem ela, sem a parte do passado que se volta para o presente, Leonard exerce a liberdade do artista ingênuo apto a inventar.

Logo, estes dois oponentes não se encontram assim tão distantes. Dependem um do outro. Enfrentam-se não apenas no âmbito da ação, o que seria banal, mas num plano que se lida também – o mais importante – com a memória que os envolve; com o fluxo linear do tempo ao qual se contrapõem; com a criação que, a seu modo, ambos engendram.

O herói supera – em muito – o seu suposto oponente: Teddy, que se descobre um pseudofalsário. Leonard, de fato, mostra-se o verdadeiro criador. Constrói a autoenganação da qual emana um gênio inventivo único, produtor de sua própria potência, livre, na desobrigação suprema de quem a nada responde.

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Um súbito desaparecimento: “O Cavaleiro das Trevas” e a impossibilidade do super-herói

João Martins Ladeira

“O Cavaleiro das Trevas” foi o último filme de heróis mascarados. A película de 2008 não impede a proliferação do gênero. Contudo, esgota-o, tornando os demais exercícios um gato girando em torno do rabo.

Estes super-heróis cinematográficos talvez sejam o substituto do western. Não se pretende comparar ambos, questionando, por exemplo, suas respectivas qualidades visuais – ou, em alguns casos, a ausência delas.

A conexão entre eles reside no modo como lidam com uma fantasia cara ao cinema norte-americano: a contraposição entre forças antagônicas, conduzindo à reintegração das partes, com resultados satisfatórios ou decepcionantes, mas guiando sempre a alguma conclusão.

Estes embates nunca estiveram tão nítidos como no western. Em luta contra algo – os índios, os bandidos ou o próprio oeste – o herói encontrava ímpeto que o impelia a agir. Suas forças brotavam das circunstâncias e, principalmente, de personagens anexos, em seu auxílio.

No filme de super-herói, este formato reaparece de modo excepcional. Os oponentes podem ser inimigos universais (os Nazistas e o Capitão América); criaturas sobrenaturais (Venon e o Homem Aranha); seres de outros mundos, dimensões ou planetas: oponentes sem dubiedade.

Em momentos mais interessantes, estas películas nos apresentam as contradições da autoridade, questionando a própria soberania. O poder exercido por este herói será sempre arbitrário, legitimado apenas por um uniforme e algumas boas intenções.

Deste segundo grupo, exemplo notável se torna a série do Demolidor ou o Batman de Christopher Nolan. Algo, porém, distingue ambos. “O Cavaleiro das Trevas”, especialmente, espelha dúvidas irreconciliáveis, ausente nos filmes que não são obras.

Decerto, o cinema clássico convive não apenas com resoluções favoráveis. O filme da “questão social”, por exemplo, fornece o espírito de denúncia que trava os personagens em situações impossíveis vencer. Recorde-se “O Fugitivo” (I Am a Fugitive from a Chain Gang): “Eu roubo”.

Igualmente fadado ao fracasso será o anti-herói do filme de gangster, bode expiatório – de “Scarface – A Vergonha de Uma Nação” a “O Pagamento Final” – que redime, com sua própria morte, a culpa por todos os seus crimes.

Porém, em nenhum momento as circunstâncias se mostram tão complexas quanto em “O Cavaleiro das Trevas”. Não se trata de perder ou ganhar, mas da submeter toda expectativa de conciliação a uma pulsão inexorável impossível de conter.

O espetáculo está pronto. Aparentemente, todos ocupam seu devido lugar. Há os vilões, o Coringa e, posteriormente, o Duas Caras. Há também o grupo de apoio – Alfred, Gordon, Rachel e Fox. Prontos a desempenhar suas funções, portam-se – quase – de modo exemplar.

Em sincronia, envolvem-se no conflito segundo o quinhão de suas partes. Assim, ao longo de ações intermediárias, o herói se desenvolve, graças a seu apoio, afirmando suas forças e preparando-se para o final. Mas o final nos engana.

O ápice, ao que parece, se localizaria na derradeira luta entre Batman e Coringa. O filme, contudo, contém uma coda, outra luta, agora com Duas Caras. Aqui se traça um beco sem saída para o herói.

Não é incomum a qualquer personagem solucionar tensões apenas para se descobrir incapaz de viver no mundo que ele próprio ajudou a criar. Em “O Homem que Matou o Facínora”, Tom, o cowboy, elimina Vacancy apenas para garantir espaço ao futuro senador Stoddard.

Contudo, em “O Cavaleiro das Trevas”, o resultado não garante nem ao menos a chance de resolução em qualquer direção. A chave do filme está no desaparecimento de Batman durante o último instante.

Wayne acreditava na possibilidade de inspirar outro herói, que agiria não com os punhos. Dent se tornou sua principal aposta. O promotor prende a máfia, processa o contador oriental, e parece o personagem apto a instaurar a lei em Gotham.

Todavia, os assassinatos em série conduzidos pelo Coringa terminam por atingir o próprio Dent, e uma transformação ocorre. Metamorfoseado em vilão, torna-se o Duas Caras, como um indicativo de um plano mais extenso do próprio Coringa.

Na conclusão, ao invés de nos conduzir a algum motivo que instaure alguma ordem, melhor ou pior que aquela inicialmente apontada, Batman se desfaz. Não deve morrer, pois o herói não é Scarface. Vai, afinal, perder; mas perderá de uma forma muito particular.

Outros personagens se viram em encruzilhadas semelhantes. O filme policial se assenta sobre um homem que pode vencer a batalha, mas nunca a guerra. Sabe-se que cada criminoso é somente um caso, um pedaço do crime em si, problemática mais ampla.

Contudo, no filme policial os esforços, embora se arrastem em direção a uma perseguição infinita para além de cada película, encontram-se protegidos por certa dimensão institucional. Batman, todavia, não pode ser como o personagem deste cinema policial.

Se sua expectativa havia sido a de inspirar outros homens, visando a um dia abandonar a máscara, esta aposta resulta num terrível engodo. Ao invés de criar heróis, produz monstros, como o Duas Caras, que lhe vem não acidentalmente, mas por consequência de seus atos.

Mesmo o Coringa se constituíra por inspiração, um vilão que se quer descobrir como igual. “Não fale como um deles. Você não é. Mesmo que queira ser”. Curiosamente, quer se afirmar como um estranho parceiro.

Torna-se parte de um binômio fundamental, mas parte consciente, criada pela monstruosidade do próprio herói. “Você me completa”, diz. Seria possível supor uma imagem dessas em um formato destinado a elaborar, a partir do conflito, qualquer ordem?

Só se pode entender a visão de Gordon como um autoengano: “Ele é o herói que Gotham merece, mas não que precisa agora”. Pode-se concordar somente caso se considere herói e cidade igualmente terríveis e insanos.

Alegoria que é da guerra de guerrilha – como Bourne e outros bons personagens do cinema recente – “O Cavaleiro das Trevas” nos choca contra um muro. O herói, esse herói contemporâneo decaído, herói sem pátria e sem bandeira, trava uma guerra de milícias, cujo drama reside na proximidade e na distância de todas as circunstâncias que organizaram a expectativa de integração.

Opera em uma forma exatamente idêntica a do formato clássico, do binômio e do englobante. Alguém deveria vencer ou perder, reafirmar a integração para além de sua dimensão inicial. Aqui, porém, isso parece impossível.

As forças em jogo não bastam mais: estão deslocadas frente à imaginação que deveriam incorporar. O que as impede é exatamente a condição expressa nos vários reflexos do projeto de perversão coletiva introduzido pelo Coringa.

Batman foge porque sabe que será perseguido. As circunstâncias que deveriam lhe apoiar estão contra ele: a polícia, os cidadãos, a imprensa, todos se tornam seus inimigos. A apreensão, raiva e ansiedade de cada um deles se dirigem exatamente para seu suposto herói.

O resultado espelha o tipo de desabrochar diabólico proposto pelo próprio Coringa. Não era objetivo do vilão despertar forças destrutivas capazes de lançar os homens uns contra os outros. Não terá seu projeto, enfim, dado resultado?

Presos em um barco, os cidadãos de Gotham mostram sensatos o suficiente para não explodir a outra embarcação repleta de criminosos. Todavia, sua razão não os auxilia no julgamento sobre Batman.

O vilão, então, inverte a sua posição em relação ao herói, afastando-o exatamente do grupo mais relevante: a própria comunidade. Sem essa fantasia, os sonhos do cinema americano não podem se manter de pé. Indiretamente, a expectativa do Coringa se realiza.

Estariam, em “O Cavaleiro das Trevas”, condenadas as ilusões que assentam o cinema clássico – e com elas também o filme de super-herói? No western, elas tinham sido substituídas pela possibilidade tão somente de sobreviver um dia após o outro, com em Peckinpah.

A fuga de Batman deixa dúvidas sobre a chance de se conceder, a este herói, o mesmo benefício. Ao lhe obrigar a fuga, não se oferece ao personagem nem mesmo a chance de ver outro dia. O que reserva, então, o futuro? Nada, talvez.

Por duas vias, mantém-se a expectativa de perversão coletiva em aberto. Antes de ser preso, o Coringa ameaça: a resistência dos cidadãos em tomar parte em sua pulsão destrutiva é apenas temporária. Cedo ou tarde – talvez mais cedo que tarde – sua resistência irá ceder.

A vitória de hoje, então, mostra-se momentânea de forma duplamente assustadora. Não se trata somente de uma situação mais grave que a inicial. Consiste apenas em adiar o próprio caos, sem nunca saber sobre a possibilidade de derrotá-lo.

A circunstância derradeira se torna um impasse, com o recuo do próprio herói, sua dissolução. Não para ceder lugar a outro herói, já que seu substituto, Dent, também se destruiu devido ao mesmo delírio. No final, o espaço da resolução permanece vazio, sem resposta.

Um finale? Ou talvez outro começo? Se poderia um neo-filme-de-super-herói, conduzindo ao limite seus dilemas intrínsecos? Seria um modo de escapar da repetição interminável, numa oportunidade deste cinema, quem sabe, rejuvenescer.

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Arte & Estética

Como ver o pato Donald: afetos, ações e as animações da Disney

João Martins Ladeira

O efeito dura apenas uns poucos segundos. O personagem, um pato, um cão, um camundongo, prepara seu movimento. Vai correr, pular, cair. Seu gesto, porém, nunca ocorre por si só. Depende de um instante que antecede toda ação ou que a prolonga depois do fim.

Antes de correr, este animal da Disney, este ser que age e fala, esta criatura, Donald, talvez, sustenta seu peso apenas em uma de suas pernas. Enquanto isso, a outra se eleva, buscando empuxo. Seus braços se cruzam na altura do tronco.

Seu rosto e seu corpo são ambos moldáveis, nunca rígidos. Poderia ser Pateta: sem parecer flácido, entre um quadro e outro seus membros se contraem ou se dilatam. Ao se deslocar para o alto, esticam; quando empurrado para baixo, se estreitam.

O personagem dispara. Mickey, seria possível, ao encerrar seu deslocamento, não o termina de súbito. Antes de parar, sua carne pende à frente por ainda um instante, mesmo que seus ossos já tenham encerrado a corrida. Um pedaço de pele ainda balança, chacoalha.

Donald, Pateta, Mickey, todos são especialista em movimento. Quadro a quadro, a animação lida com o dilema de produzir minúsculas transposições entre os vários desenhos necessários de guardar em um único segundo.

Os olhos percebem estes detalhes somente em câmera lenta. São passagens que introduzem dinâmica na imagem outrora estática, permitindo esta mágica. Trata-se de uma dimensão intrinsecamente cinematográfica.

Não soa errado argumentar sobre a dimensão ideológica da Disney. Incorreto, sem dúvida, seria considerar as animações apenas como uma narrativa que, porventura (vejam!), possui imagens.

Disney talvez materialize relações de poder eximidas da autoridade paterna. Seus vínculos de vassalagem entre tios e sobrinhos porventura indicariam (quem sabe?) a dualidade entre dominantes e dominados que nem ao menos cogitam a superação de seus papéis.

Os laços entre homens e mulheres bem poderiam se pautar pelo desejo nunca consumado, num vínculo sexual estéril. Os personagens, ególatras de bom grado, encontrariam mediação somente na figura de Mickey, autoridade dotada da dádiva materna do infinito bom senso.

Que seja. Suas imagens, todavia, apontam para o fluxo que é a essência do cinema. O sentido da animação depende da conexão entre estes pequenos atos e da possibilidade de experimentar, no desenho, um movimento atribuído.

Não se trata de uma tarefa simples, esta de prover movimento a algo imóvel. Para qualquer outra forma de cinema, obtém-se a dinâmica através da passagem automática entre quadros, o seguinte sucedendo o anterior devido à operação da câmera.

Lá, o cinematógrafo encadeava os fotogramas em linha, produzindo um tempo objetivo. Aqui, a animação precisa construir aquilo que alhures surge como uma dádiva.

Em seu quadro, não se conta com a máscara construída a partir das bordas da imagem fotográfica. Ao contrário: como em qualquer desenho, depende dos limites da figura e não das margens arbitrárias do enquadramento.

Em oposição à figura condenada à imobilidade, a animação, como todo cinema, depende do fio que conecta diferentes planos e produz um elo de um quadro a outro. Um desenho animado, contudo, precisa planejar este movimento.

Cada quadro, naquilo que aponta para além de si, depende de uma engenharia própria. As regras da animação, desenvolvidas pelo próprio Disney, buscam construir esta passagem, fabricar este fio.

A fim de garantir a expressão, se deveria esticar ou apertar os traços de um personagem, comprimir o seu rosto ou alongar seus traços. Deste modo, um plano, então, poderia se distinguir do antecessor.

A sugestão do movimento se produziria por esta expressão, elo entre uma imagem e outra. O personagem vai estar triste ou feliz, ativo ou cabisbaixo, e estas sensações se percebe nos atos que se produz a partir do interstício entre os quadros.

Do mesmo modo, deve-se demonstrar o fluxo antes de executá-lo. Tem-se que anunciar um pulo por um quadro no qual se mostra, de passagem, a sua preparação. Ao final, obriga-se ainda a marcar o que foi: os vestígios do rabo que balança, as orelhas que sofrem de inércia.

Os animadores imaginaram estas técnicas como instrumento para garantir realismo. O que se espera, porém, difere do que ocorre. O efeito obtido se distingue da mera imitação. Refere-se à produção da potência que coexiste com qualquer ação.

Está-se a produzir afetos, e não apenas ações. São possibilidades para criar aquilo que virá a ser. Para isso, o pequeno ato se diferencia a partir do contraste, como um deslocamento que ocorre quando todo o restante ainda se encontra estático.

Assemelha-se ao ponteiro de um relógio que se mexe sobre um marcador que continua parado; a um músculo da face que se desloca em contraponto ao restante do corpo; a um pássaro cuja velocidade de voo se percebe contrapondo-o às lentas nuvens.

Expressar um ato significa enfatizar uma expressão antes ou depois deste próprio ato, em criar pequenas ações nas passagens entre imagens. Através de ambas as técnicas, consegue-se a sensação sobre o gesto. Simultâneo ao movimento, infere-se sua qualidade.

Demonstra-se a ação com um gesto fora do ato, fora do próprio tempo, e – mais radical – fora do próprio espaço. Impossível explicá-lo como um momento que se subordina apenas à lógica do próprio espetáculo.

Num teatro de variedades, o público ri de certos esquetes, introduzindo a gargalhada na performance do artista, atrasando seu desempenho para dar lugar à alegria da plateia. Um espetáculo cinematográfico, porém, liberta dos condicionantes externos o tempo de um gesto.

O aperta e puxa, o instante pregresso, o momento posterior, todos são uma potência. Intrínsecos à animação, tomam para si um traço que o cinema em geral havia se apropriado em outras de suas dimensões que lidam com a expressividade.

Este cinema em geral possui um momento especial para a expressão. Nele, a oportunidade ímpar de obter expressividade está no primeiro plano. Engana-se quem encara o close como uma parte do todo ou como um olhar aproximado. Trata-se, na verdade, da face por si.

Em um rosto ou nos objetos em primeiro plano, criam-se dimensões próprias de existência, com uma qualidade que ultrapassa o que quer que seja. Trata-se de uma possibilidade que se refere ao objeto por si, e não nos atos que o rondam.

Em ambos os cinemas, esta afecção atrelada à ação vive uma existência dupla. Divide-se entre aquilo em que se expressa – a própria ação – e a expressão ela mesma. Na animação, contudo, a expressão reside não apenas em rostos ou em objetos em close.

Se o afeto não se concentra mais no primeiro plano, é porque ganha outra dimensão. Não se atém a este ou aquele plano, mas se dispersa. Reside nas onipresentes contrações ou dilatações nos corpos de personagens, indicando, antes, quais paixões se formarão depois, não como afeto, mas como ação. Todo sentimento, porém, começa como uma possibilidade localizada na matéria que se expande ou aperta, se move ou para.

Revelando-se surpreendentemente complexa, a afecção, nos desenhos animados inventados por Disney, reside naqueles fios que encadeiam os planos: ocorre a partir da sensação de algo que está ocorrendo, ocorreu ou irá ocorrer.

Se, de fato, estes momentos de expressão estão em cada ação de todo personagem de desenho animado, não se relacionam, então, às suas idiossincrasias particulares. Revelam-se como gestos profundamente não individuais.

Dimensão virtual, atualizam-se naquilo que será ou que já foi; na expressão que produz a tessitura dos quadros, plano a plano.

A necessidade de criar a cena ela mesma, construindo cada imagem, uma vez que não se pode apropriar-se do movimento a partir da fotografia, obriga à elaboração do afeto em termos mais complexos do que ocorre com o restante do cinema.

Eis a beleza da animação: pela necessidade de construir tudo aquilo que, para outras formas de cinema já se encontra dado, termina por obrigar à análise daquilo que já parecia certo.

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Estranhas aproximações: Sherlock Jr, 8 mm e os dilemas da imagem fotográfica

João Martins Ladeira

Comparações liberam forças inusitadas. Toda aproximação produz um experimento, como a inserção de um novo organismo em um ambiente já conhecido. Cultivá-lo permite observar o comportamento de duas diferenças, que, de outro modo, não viriam a conviver.

Uma comédia, como Sherlock Jr, e um thriller, como 8 mm, soam incompatíveis. Lado a lado, o paradigma da parodia de detetive e uma película interessante, porém sem maior expressão, revelam, ambas, questões caras ao cinema.

Sherlock Jr, um clássico de Buster Keaton, versa sobre um jovem projecionista cujo sonho é se tornar detetive. Inseguro sobre si, imagina sua vida como uma das histórias que exibe. Durante um destes filmes, transporta-se, em sonho, para dentro da tela.

Torna-se, assim, Sherlock Jr, investigador que, para solucionar um roubo, vê-se obrigado a enfrentar os criminosos nas situações das mais diversas. Envolve-se, a partir dai, de observações à espreita, revelando perigosos esconderijos, a perseguições automobilísticas.

São peripécias visuais arrojadas para 1924. Prostrado no guidão de uma moto, sem guia após o piloto ficar pelo caminho, Sherlock Jr quase se choca com um trem em movimento, passa pela fenda de uma ponte no momento exato em que um caminhão evita que despenque, entre outras aventuras.

As gags de Sherlock Jr se tornaram ironias lapidares sobre os filmes de ação. Invertem, de fato, as expectativas usuais às películas sobre gângsteres, policiais, criminosos, reduzindo a nada a tensão e ansiedades envolvidas.

Sensação especialmente intensa, ao sabemos que Sherlock Jr nada mais é que a transposição dos devaneios do projecionista para uma tela, agindo em estado de sonho. Em um filme localizado no interior de outro, tudo se torna duplamente irreal.

Se uma película, por qualquer que seja, nos oferece a sensação de proteção, a representação da tela no interior da tela dobra tal dimensão. Sherlock Jr introduz, assim, a paródia dentro da paródia. De uma perspectiva duplamente irreal, as peripécias e golpes de sorte; as lutas; tudo reforça os prazeres visuais típicos ao gênero. Localizá-las no interior do realismo fotográfico intensifica seu efeito.

8 mm, por sua vez, narra a trajetória de Tom Welles, um investigador contratado por uma rica viúva, perturbada por descobrir, após a morte de seu marido, um snuff que registraria a morte de uma jovem. A tarefa de Welles se torna averiguar se o filme é ou não verdadeiro. Em sua jornada, termina no submundo da indústria do pornô californiano.

A identidade dos envolvidos vai surgindo à medida que Welles perscruta o filme. O principal indício se torna a presença, no filme, de Machine, um ator/assassino. Tal prova o conduz aos demais culpados. No fim, perturbado pela certeza sobre a autenticidade do homicídio, o investigador se torna o vingador da moça.

Assassinar os culpados aponta para a vingança típica a estas narrativas. Detetives, no cinema, ultrapassam usualmente as leis em direção a um juízo mais dramático. A forma específica através da qual tal ação procede, aqui, depende, porém, de um dado particular.

Refere-se, novamente, ao filme dentro do filme. A investigação de Welles não existiria sem o indício proporcionado pelo registro na tela. As contradições documentadas, observadas a partir da janela cinematográfica, tornam possível toda a trama anexa.

Central será a contradição sobre a representação fotográfica. A narrativa de 8 mm decorre da dúvida sobre um documento. Como solução, representa-se, no filme que o expectador assiste, a investigação que avalia a verdade de um arquivo.

Tal procede devido, novamente, ao realismo ontológico intrínseco à imagem fotográfica. 8 mm desdobra o tema, refletindo sobre as consequências desta natureza. A dúvida é central ao filme. Frente à falsidade daquela película, se inocentaria o rico industrial.

O risco da autenticidade, porém, transforma o filme em evidência. A condução aos culpados, afinal, encontra-se inscrita na película que Welles observa. A exposição de vítimas, criminosos e cúmplices inscrita no filme proibido ordena toda a trama.

Uma narrativa biográfica sobre tortura ou sadismo, por operar como uma confissão, transforma-se automaticamente em uma assinatura da culpa. A fotografia, porém, apropria-se, em um nível incomparável, da presença da voz que narra fatos e enuncia, por sua presença, a própria culpa.

O registro concreto do homicídio desnuda qualquer possibilidade de proteção, deixando o ato à mostra. Em tais circunstâncias, não há lugar para se esconder. Em outro extremo, a comédia de crime constrói a barreira do riso, intrínseca ao gênero, tornando tudo opaco graças à defesa produzida pela tela.

A gargalhada, afinal, relativiza a violência envolvida ao associar o crime com o humor. Todavia, a brutalidade fielmente registrada em 8 mm inverte tal lógica, tornando impossível, até mesmo para o próprio expectador, qualquer resguardo.

Nessa comédia, a possibilidade de destruição de qualquer personagem se atenua pela certeza sobre o caráter fantástico concedido ao formato. No cinema, ela vai ter um peso duplo: o realismo da fotografia convive com a fantasia das circunstâncias.

Aquele thriller não representa um caso isolado. Não parece casual que outros filmes versem, eles também, sobre o homicídio cinematográfico: A Tortura do Medo; No Submundo do Sexo; Holocausto Canibal; Guinea Pig; estes, e tantos outros, lidam com a cumplicidade explícita deste tipo de possível registro.

A famosa comédia e o casual filme de detetive convergem na questão central ao cinema. Para além dos respectivos enredos, ambos versam sobre a tela e as consequências de observá-la, trazendo à tona a certeza de que, para além de narrativas, está-se a tratar, de fato, de nada além que janelas.

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Demolidor, Fisk, Hell’s Kitchen: nas ruas, o poder soberano de heróis e de seus duplos

João Martins Ladeira

Os heróis de papel jornal versam sobre a soberania. Por décadas, os gibis concentraram as contradições deste tema viscoso. Alguns radicalizaram as complexidades do gênero. Exemplar vai ser o Demolidor; e sua versão produzida por Netflix, digna de nota.

Matthew Murdock, filho de um boxeador que enfrentou o insucesso por toda a vida, crescera motivado pela expectativa paterna de nunca ter de utilizar os punhos para viver. Em sua infância em Hell’s Kitchen, Matt termina cego após um acidente químico.

Um dia, Battlin’ Jack, seu pai, vai se contrapor ao esquema de apostas que o obriga a perder uma luta. Assassinado, deixa Matt órfão. No orfanato, o garoto aprende a desenvolver seus demais sentidos em um plano além do humano.

Matt cresce para se formar em direito na Columbia, exercendo, contudo, a advocacia somente por meio período. Vive em dois mundos. Durante o dia, opera com a lei. À noite, ao vestir o traje do Demolidor, executa a justiça que as leis tornam difícil cumprir.

Após um intervalo em uma firma chique, Matt retorna a Hell’s Kitchen. Em seu pequeno escritório, prefere o vínculo com o bairro a se tornar sócio no que quer que seja. Os Murdock e Hell’s Kitchen possuem um elo.

Todo herói possui um nêmesis. Wilson Fisk, outro órfão – não por acidente, mas por ter, ele mesmo, assassinado seu pai opressor – cresce, também em Hell’s Kitchen, para se tornar um personagem poderoso.

Fisk surge como um estranho vilão. Empreendedor emprenhado em renovar o outrora decadente espaço entre a Rua 34, a 59, a 8ºAvenida e o Rio Hudson, parece um tipo de caudilho disposto a cometer crimes bárbaros em prol de um benefício posterior.

Como tirano, Fisk congrega lavagem norte-americana de dinheiro, tráfico de heroína chinesa, violência japonesa e distribuição russa de drogas. Este vilão idiossincrático sonha – nas sombras, sem mostrar seu rosto – com a gentrificação de Hell’s Kitchen.

Ambos, herói e vilão, vinculam-se intensamente ao bairro irlandês. A seu modo, tanto o Demolidor quanto Fisk amam aquela vizinhança que preferem não chamar nem de Clinton nem de Midtown West. A autoridade de protegê-la ou defendê-la ocupa a fantasia de ambos.

Para desmanchar esta rede global de crime, Matt se torna herói, vítima e criminoso. Vítima pela vingança que busca, na forma de justiça, para a violência que outrora sofrera. Afinal, o Demolidor havia sido, no passado, atacado pelo crime que planeja agora enfrentar.

Criminoso pelos atos de violência que produz, o herói se outorga carta branca para utilizar seus punhos. Tal autoridade ele exerce sem contrato, sem legitimidade. O Demolidor, como bom herói de quadrinhos, constitui-se como um soberano por excelência.

Em seus atos, o Demolidor busca sempre a solidão. Em vão: o herói condensa diversos colaboradores na luta contra Fisk: Foggy Nelson, sócio de Matt; Karen Page, secretária de ambos; Ben Urich, incansável jornalista; Brett Mahoney, honesto policial; Padre Lantom, vigário local.

Porém, tanto o Demolidor quanto Matt se esforçam por desmotivar estes companheiros. Argumenta-se: os perigos são muito grandes; os riscos envolvem a própria morte. A prerrogativa da ação apenas o Demolidor deveria possuir.

A força dos punhos deve recair nas mãos de apenas um. Os demais se submeterão a algo a que o herói deve permanecer insubmisso. Assim como o seu nêmesis. Fisk daria um belo anti-herói, uma espécie de Michael Corleone na busca trágica por legalizar o ilegalizável.

O criminoso possui algo desse seu duplo. A orfandade e o abandono são apenas um entre outros traços. As motivações de Fisk são legítimas, mas embaralhadas em meios espúrios. Assim como as do Demolidor.

São posições próximas, mas trocadas. Fisk sempre se justifica: nunca deseja realizar aquilo que faz. Murdock se debate: questiona-se sobre fazer o que não deseja realizar. Drama psicológico?

Talvez. Mais importante se torna não questionar motivos ou procurar explicações para um Macbeth da West Side. O tema reside na dimensão do poder soberano e em seu imperativo por carecer de limites.

O tópico se concentra em definir quem – o Demolidor ou Fisk – exercerá poder sobre Hell’s Kitchen excluindo todos os demais: principalmente, o seu opositor. Nesta luta, herói e anti-herói caminham lado a lado. As mesmas questões se aplicam a ambos.

Discernir a indiscernibilidade do poder e concentrar-se na possibilidade de agir ou não agir implica em abandonar justificativas. O herói possui as motivações que bem entende. Por seus punhos, o jugo que se cria terminará um dia igual àquele elaborado por qualquer vilão.

Não é casual que a intervenção de Fisk verse sobre a cidade e sua espetacularização. Nem que sua defesa, pelo Demolidor, como o herói da classe trabalhadora que se vale ser, refira-se àquela velha região de imigrantes repleta de rostos conhecidos.

O enfrentamento entre ambos consiste na luta por conduzir certas dimensões essenciais à vida. Há poder maior que o de delimitar a fronteira na qual estas criaturas que vivem operam naquele espaço da própria cidade?

Assim, ambos se enfrentam para definir, sem dúvidas, quem vai ser o xerife das ruas. A boa vida em Hell’s Kitchen não justifica sua luta. O embate é por Hell’s Kitchen e pela possibilidade de ditar como será esta boa vida.

Treze horas de filme nos guiam às várias tentativas de desmontar o esquema de Fisk. Soluções legais? Com provas e testemunhas que desaparecem, com coação e suborno sistemático? Tal solução soa impossível.

Próximo do fim, contudo, uma brecha produz uma testemunha e algumas evidências. Fisk vai a julgamento. A soberania do herói sucumbe à lógica racional-legal do Estado, poder mais amplo. Ou quase. Fisk foge, correndo, sem saber, em direção ao inexorável conflito entre os dois homens.

Como se esperava, herói e sua contraparte se enfrentam. O único limite autoimposto pelo Demolidor – não matarás – corre o risco de sucumbir. O herói vence seu oponente, e as sirenes da viatura guiada pelo sargento Mahoney o eximem de decidir sobre o pecado mortal.

A alternativa o protege da contradição inerente a todo poder. Realizá-lo implica lidar com a contradição própria ao único instrumento que deveria restringi-lo: a lei. Consumar a soberania revela a exceção inscrita na norma, aniquilando, quando se concretiza o ato, qualquer regra.

E, no fim, o Demolidor entrega – ou é obrigado a entregar –  Fisk para a lei. À sua autoridade, outra se sobrepõe. O tribunal volta a ser o seu soberano, salvando-o de encarnar o poder que a alternativa, o homicídio, iria demandar.

Prover a lei havia habilitado a soberania. Em um mesmo movimento, também a regra. Disfarçado pela norma, o poder soberano se escondera na legitimidade. Atendo-se à lei, esquivou-se do logro que sua realização congregaria.

A questão de toda regra, enfim, reside na impossibilidade de realizar a justiça que a define. A principal contradição da norma surgirá quando se consumir às claras. Pois, ao descartar seu conteúdo, qualquer lei se mostraria apenas como um instrumento para exercer a própria soberania.

Concretizar a norma produziria um mundo guiado pela regra. Significaria finalizar os desígnios ai contidos, como no juízo final. Concluir tal trabalho revelaria seu cerne: a possibilidade de fazer ou não fazer, agir ou não agir, sem, para isso, necessitar de qualquer justificava.

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O centro do cinema: Boyhood e a gênese da imagem fotográfica

Todos conhecem as peripécias presentes na filmagem de Boyhood. Doze anos de trabalho condensados em 165 minutos narram a ficção sobre uma família de classe média norte-americana. Neste curtíssimo espaço de tempo, presencia-se coisas e pessoas envelhecerem.

Diante de nossos olhos, tudo ocorre em um exercício de extremo realismo. Experiência semelhante fora conduzida em “Todos os Dias” (Everyday), de Michael Winterbottom, e em “56 Up”, de Michael Apted e Paul Almond.

Frente à natureza do cinema, seria lúcido perguntar a razão da mesma aposta já não ter sido repetida duzentas vezes mais. Afinal, registros deste tipo apontam para uma questão essencial, tanto à fotografia quanto ao movimento cinematográfico.

Por ora, deixemo-nos enganar discutindo narrativas. O roteiro retoma temas caros a Linklater. Mesmo em trabalhos ingênuos como “Escola de Rock” suas dúvidas sobre a angústia de crescer são uma constante. Tais questões, afinal, norteiam certa imaginação.

Aqui, certamente, a qualidade da reflexão vai além. Boyhood possui importância dramática. Versa não apenas sobre dramas de final de adolescência. Reflete sobre uma década de empobrecimento e as relações desiguais entre gêneros.

Tais traços, porém, apenas nos distraem da efetiva importância do filme. Digno de nota são as consequências do registro em si do efeito da passagem destes anos. Trata-se de um resultado capaz de ilustrar qualidades decididamente cinematográficas.

Linklater fizera feito algo semelhante com a trilogia que reuniu Jesse e Celine em 2013, 2004 e 1995, em conexão com o pequeno interlúdio em Waking Life. Podemos nos perguntar se qualquer sequência de um filme banal não faz o mesmo.

A pergunta nos leva ao ponto chave. A possibilidade de, através da fotografia, apropriar-se da presença de determinado ator ocorre na captura de um momento. Associada à ilusão de movimento típica ao cinema, introduz-se a apreensão, em si mesmo, de um fluxo.

Tais técnicas permitem tomar aquilo que surge em frente à câmera, e não apenas observar a realidade como quem abre uma janela para o mundo. Como resultado, depara-se com um elemento essencial à fotografia: o efeito de identificação entre imagem e objeto filmado.

Um realismo de tal tipo supera em muito a ingênua expectativa sobre qualquer tipo de eliminação da narrativa. De fato, não se espera que a encenação desapareça: exatamente o contrário. A força da trama reafirma o essencial.

A ingenuidade do efeito tosco presente em experimentos como Sleep, Blow Job, Empire, entre outros devaneios de Andy Warhol, reside em crer no caráter imediato da realidade. A força de Boyhood se localiza exatamente em se ater à narrativa para reapresentar, a nós, o próprio tempo.

Nesta relação, a estrutura romanesca se coloca tão somente a serviço da imagem. Exatamente por isso, concentrar-se na trama significa ater-se a um ponto menor. O centro do filme reside na essência do cinema: a observação, o registro e a apropriação de uma dada circunstância.

Uma questão tipicamente cinematográfica está em eliminar a realidade através de sua apreensão. Não se trata de “retratar os fatos como ocorreram realmente”, mas de permitir que a criação de uma ficção ilustre a lógica fundante da gênese da fotografia.

Um cinema capaz de levar tal questão ao limite poderia permitir a correspondência entre efeito cênico e a essência da situação concreta. Tal tarefa Bazin sonhou como possível de cumprir através do neorrealismo italiano.

Tal equilíbrio entre drama e realização permitiria adotar a expectativa contraditória de eliminar o cinema. Boyhood nem de longe busca tal extermínio. Exatamente por isso, ganha, ao invés de perder.

Tal filme depende intensamente das próprias circunstâncias concretas nas quais os atores se transformam, envelhecem; em que, na tela, sucedem-se objetos de uma época, como roupas, Nintendos Wii e canções de Britney Spears.

Como efeito, libera-se a imagem fotográfica em seu aspecto mais primordial. O filme assume um traço essencial ao cinema: a possibilidade de ocorrer não por causa, mas a despeito de qualquer atuação.

Afinal, filma-se registrando automóveis que perseguem uns aos outros em filmes de ação; fragmentando um ator em mãos, braços ou detalhes do rosto, estratégia para apresentar um personagem. E, em todas estas experiências, descarta-se qualquer atuação.

Abandonar a camada das convenções narrativas que impõem uma organização diferenciada em relação à realidade permite fixar-se na qualidade do personagem não como ator, mas como um objeto que se vê.

A questão, assim, torna-se estar diante de um indivíduo possível de fotografar. Veem-se os desdobramentos de suas ações. Mas, principalmente, apropria-se uma subjetividade capturada pela câmera.

A gênese da imagem fotográfica, o aviso de que algo, em algum momento, ocorreu para não se repetir mais, característica estranha a qualquer outra forma de representação visual, ultrapassa problemas estéticos. Trata-se essencialmente de uma questão psicológica.

Para formas de expressão baseados na apreensão fotográfica, o sujeito, em si, torna-se não apenas irrelevante, mas, supérfluo. O centro reside na possibilidade de, através da narrativa, perceber as consequências nos efeitos criados pela gênese da imagem fotográfica.

Boyhood, em sua proposta, termina atingindo o centro do cinema, arte que indica uma presença que foi. Para além do peso desnecessário da narrativa, permite alcançar o traço essencial deste meio: a apropriação do mundo.